Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 13, 2008

FERREIRA GULLAR

Bossa nova em Macondo


Já naquele tempo, em matéria de música popular, as coisas andavam muito rápido

ANO NOVO, vida nova. Pois é, mas talvez exatamente por isso a gente começa a lembrar de coisas velhas e até mesmo velhíssimas, como a indecifrável cena em que, menininho, estou com meu pai e minha mãe dentro de um automóvel que enguiçou de noite numa estrada sem luz e sem gente. Sonhei ou aconteceu? Que eu saiba meu pai nunca teve carro, mas tio Elpídio tinha. Ou era ele e não meu pai quem dirigia, um Ford-de-bigode, desses que só se vêem em filme mudo?
Lembrança bem menos remota me veio ao ler nos jornais que 2008 assinala os 50 anos do surgimento da bossa nova. Não que tenha algo a ver com ela, eu que me meti em tantas coisas, causa atual de alguns tormentos. É que a imprensa tem também mania de lembrar, e para isso precisa ouvir sobreviventes, um dos quais sou eu. Na qualidade de "testemunha ocular da história" -para evocar a expressão do extinto "Repórter Esso"- sou indagado sobre o golpe de 1964, do CPC da UNE, o concretismo, o neoconcretismo, o Grupo Opinião, a passeata dos 100 mil, a morte do pianista Tenório Júnior, em Buenos Aires, a morte de Allende, em 11 de setembro de 1973, e até do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. E o pior é que, neste caso, eu estava lá, não dentro do Catete, que não era ninguém para andar em tão altas rodas: estava do lado de fora, num bar que havia quase em frente ao palácio, quando o já mencionado "Repórter Esso" informou, por volta das oito e meia da manhã, em edição especial, que o presidente Vargas acabara de se suicidar com um tiro no peito em seu quarto no palácio do Catete. A verdade é que eu morava numa pensão ali perto, na rua Buarque de Macedo, e mal pudera dormir com o movimento de patrulhas do Exército debaixo de minha janela. Estava ali de ingerido, minha luta era outra, acabara de publicar um livro totalmente alienado, em que, como um poeta-bomba, me implodira junto com a linguagem. Naquele boteco, todo mundo parecia odiar Vargas, mas, após a notícia de seu suicídio, alguém gritou: "Mataram o Velhinho!". E a indignação tomou conta do ambiente como logo tomaria conta da cidade e do país.
Mas voltemos à bossa nova, ou melhor, ao que a sua evocação me fez evocar. Não testemunhei o nascimento da bossa nova, nada sabia de João Gilberto e, quando conheci Carlinhos Lyra, ele já estava engajado no CPC. Mas vivi, sem o saber, em 1948, em São Luís, a emoção de seu remoto nascimento, de sua pré-história. Costumo dizer que nasci em Macondo, porque o modernismo só chegou a São Luís quase 20 anos após a Semana de Arte Moderna. Isso, no caso da literatura porque, no caso da música popular, graças ao rádio, estávamos em dia com as novidades. Tanto assim que, mal Dick Farney havia gravado "Copacabana" e já, lá na rua dos Prazeres, estava eu, junto com meu irmão Dodô, na casa de um amigo, ouvindo-o cantar. Alguém já tinha escutado a música na rádio Timbira e soubera do programa que a emissora transmitiria aquela tarde, dedicado a Dick Farney. "Copacabana, princesinha do mar..." A sua voz, seu modo de cantar diferente, sem a retórica e os giros emocionais de Orlando Silva, deixaram-nos fascinados.
E não é que, meses depois, vou trabalhar como locutor na Timbira?
E não é que, no ano seguinte, em 1949, Dick Farney chega ao Maranhão para apresentar-se no teatro Artur Azevedo? Para você ver como, já naquele tempo, em matéria de música popular, as coisas andavam rápido. E isso indica também como o pessoal já estava cansado de tanto bolero e tanto dó de peito.
Mas o melhor vocês ainda estão por saber. É que, como a ida de Dick Farney a São Luís havia sido em parte patrocinada pela rádio Timbira, foi eu o locutor escolhido para apresentar o seu show, diretamente do palco do teatro. Essa tarefa deveria caber a Marcos Vinícius, locutor muito mais experiente, que adoecera. Assim, vi-me eu, ali, nas coxias do teatro Artur Azevedo, de paletó e gravata, sapato engraxado, rosto empoado e em pânico, para apresentar ao público maranhense o novo ídolo da música popular brasileira. Lembrei-me que Marcos Vinícius, ao narrar um programa sobre a música paulista, falava da "terra do café, essa preciosa rubiácea, produto de São Paulo para o mundo". Resolvi imitá-lo e, assim, antes de chamar o cantor ao palco, teci elogios à Cidade Maravilhosa, berço do samba e das mulatas sestrosas, ao Pão de Açúcar, ao Cristo Redentor, até que a platéia, não sei por que, começou a vaiar e gritar: "Dick Farney, Dick Farney". Ele assomou ao palco e as vaias mudaram-se em aplausos. Saí de lá desapontado, sem entender por que os maranhenses odiavam tanto o Rio.

Arquivo do blog