Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Cora Ronai - Crônica de duas cidades

O GLOBO

A violência que matou Detroit pode matar o Rio; basta a omissão dos políticos

Quando a minha turma andava aí pelos 14, 15 anos, recebeu como dever, de um dos professores, subir a favela ali em frente, observar como viviam os moradores, entrevistá-los e escrever sobre o assunto. O colégio era o inesquecível Brasileiro de Almeida, e a favela era a Catacumba, na Lagoa — ali onde hoje há um bosque com uma trilha linda e um jardim de esculturas. Na época, favelas eram apenas amontoados de casebres insalubres, onde viviam pessoas pobres. O maior perigo da empreitada era escorregar na lama e dar um mau jeito no tornozelo. O grupo do qual eu participava foi recebido com grande cordialidade: a maioria dos moradores com quem conversamos nos convidou a ver suas casas e nos ofereceu água e cafezinho, luxo verdadeiro numa área sem água corrente.


Uma senhora nos ofereceu, de quebra, a sua opinião sincera sobre nosso trabalho: achava um absurdo um colégio caro daqueles soltar os alunos por ali, "para passear", em vez de segurálos na sala de aula aprendendo matemática e português, como devia fazer qualquer escola de respeito. Nossos pais sabiam daquilo? Um ou dois anos depois, a favela foi derrubada, e os moradores, transferidos para a Vila Kennedy, em meio à gritaria que, invariavelmente, cerca esse tipo de ação. Passando o noticiário na peneira e descartando o auê dos políticos, que não fazia qualquer sentido para mim, sobrava a principal queixa dos moradores, que era a distância da Vila Kennedy para a Zona Sul, onde ficavam seus empregos. Eu tinha 16 anos e estava dividida. Tinha visto as condições de vida da favela, os casebres miseráveis de madeira encarapitados sobre valas negras, a falta de tudo; via as fotos dos apartamentos pequenos e humildes, mas decentes, e achava enorme o salto qualitativo em termos de moradia. Por outro lado, imaginava as horas de condução e, pronto, ficava de novo em dúvida sobre o que era pior.



Hoje, com o crescimento desordenado das favelas e com a guinada tenebrosa dada pelo tráfico à vida nas comunidades, não tenho dúvidas. Se a Catacumba não houvesse sido demolida, seus habitantes teriam, de fato, continuado perto dos empregos; mas os empregos que os sustentavam, passado algum tempo, não existiriam mais. Ou, pelo menos, não existiriam com a vantajosa proximidade. Estariam na Barra, em Petrópolis, em São Paulo, em qualquer lugar menos na Zona Sul, porque, alguém duvida?, a travessia do Túnel Rebouças estaria, há tempos, sendo controlada pelo tráfico.

Aliás, se a Favela da Praia do Pinto, ali onde fica hoje a Selva de Pedra, também não houvesse sido removida, ninguém poderia, tampouco, chegar à Gávea ou ao Leblon pela Lagoa. Quiosques, pedalinhos, clubes, áreas de lazer, aves, vegetação? Esqueçam. Ao longo de décadas de construções ilegais, a Lagoa, coitada, que é um ecossistema frágil e que, por natureza, está longe de ser um aquário, seria apenas uma gigantesca fossa a céu aberto.

O prejuízo, nem preciso dizer, não seria exclusividade dos "ricos". A degradação urbana causada pela violência não pode ser subestimada; e, menos ainda, pode ser considerada uma questão "elitista", já que afeta as pessoas na medida inversa dos seus recursos. Quem tem dinheiro de verdade larga a casa, fecha a empresa e vai embora sem pensar duas vezes; quem tem um dinheirinho se muda; quem tem um mínimo de condições vai morar com parentes num lugar mais seguro. Sobram os deserdados, vítimas cada vez mais fáceis da violência que já não interessa a ninguém combater.



Um passeio por Detroit, que já foi uma das cidades mais prósperas e a quarta mais populosa dos Estados Unidos, é altamente didático para quem acha que falta de segurança é problema de gente rica. Lá estão, abandonados e em ruínas, todos os grandes edifícios construídos no auge da indústria automobilística, todas as mansões dos milionários, a linda estação de trem. Ao longo da última década, o estado e a iniciativa privada vêm fazendo um esforço monumental para reerguer a cidade, mas a verdade é que, depois dos conflitos dos anos 60-70, só ficou morando lá quem não conseguiu ir para outro lugar. Sobrou, em suma, para as pessoas honestas mas sem recursos, reféns tanto dos bandidos quanto da polícia — e estigmatizadas, ainda por cima, pelos endereços malditos em que se viram obrigadas a continuar.

Não é preciso muita imaginação para transpor o quadro para cá: os ricos e a classe média cada vez mais afastados e protegidos em seus subúrbios impessoais, que encontram certa correspondência nos condomínios da Barra, e as ruas antes cobiçadas e cheias de história abandonadas e decadentes, as lojas fechadas, os casarões invadidos, a vida divertida e fervilhante congelada nos pixels de velhas fotos.

      O processo que levou à derrocada de Detroit, com exceção da questão racial americana (que, diga-se o que se disser, é completamente diferente da brasileira), foi semelhante ao que está em curso no Rio: a total apatia política face ao tráfico de drogas, a ocupação urbana desordenada, a espiral crescente da violência.

Lá, como cá, péssimos governantes se reelegeram sucessivas vezes, enquanto a cidade mergulhava no caos; é que, para os traficantes e para as gangues que efetivamente detinham o poder, a maior virtude de um politico era a omissão.Continua sendo.

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