Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Ano novo, problemas velhos-Roberto DaMatta

O Estado de S. Paulo,
É quase impossível não ser messiânico e tornar-se piegas e hollywoodiano no pior sentido da palavra nas transições. Quando dobramos os lençóis do tempo para uma outra etapa do calendário.

Na inauguração de um novo ano é complicado não desejar ou mencionar alguma coisa grandiosa. Do mesmo modo que os tempos nos obrigam não somente a comprar, mas sobretudo a comer, e comer pantagruelicamente, o bacalhau e a rabanada, é difícil trocar o exagero da demagogia auto congratulatória, pela sobriedade do ceticismo que fala das ausências.

Estamos a reboque de uma civilização marcada pela noção de tempo linear, cujo conteúdo mais claro é a idéia de progresso como uma dimensão de ordem. Mesmo sabendo que o planeta se autoconsome num desejado e contraditório aumento dos índices de produtividade e crescimento, aí vemos a presença do progresso e do avanço. Mesmo sabendo que estamos destruindo impiedosamente a Terra, celebramos felizes este 2008 que chega redondo nos números e nas promessas de mais crescimento. Como, em tempos de festa, chamar atenção para o lado negativo do progresso, mostrando que ele também destrói?

Rejeitamos como pessimismo quem, em pleno Natal, não acreditar num Papai Noel que, fabricado à imagem e semelhança no mundo americano que o inventou vermelho e branco como a bandeira dos Estados Unidos carrega, num saco enorme, presentes que endividam todo mundo.

No Brasil, onde o ''''Santa'''' ianque transforma-se num ''''Papai'''', adquirindo um lado familístico e uma consangüinidade que não passa em branco pela sensibilidade populista do governante maior, somos imediatamente lembrados das pessoas que somente agora começam a ser afilhados no chamado ''''bom Velhinho'''' que, sabemos bem, só dá presente para quem pode pagar. Assim, no palácio, está a postos o ''''Papai-Presidente'''' que ''''cuida'''' de todos os brasileiros que ainda acreditam que existe mesmo alguém que deles deve cuidar.

Para nós, é mais fácil inventar um novo país do que honrar e conservar o que existe. Reinventamos o Brasil várias vezes, sempre prestando mais atenção ao que vemos como novidade, como se a dimensão inovadora tivesse o poder mágico natalino de recriar todo o resto. O segredo do populismo à la Papai Noel é que o presidente cuida do povo, mas nada sabe ou tem a ver com as instituições públicas do governo e, menos ainda, do Estado. O chamado elo direto é eficaz porque ele é, obviamente direto, como dizem todos os comentaristas políticos respeitáveis, sem - entretanto - explicarem o que quer dizer o ''''direto''''. Ora, o direto significa que o Papai Noel Presidente nada tem a ver com a eficácia do Estado. Se as repartições públicas não operam, se as prisões são uma vergonha, se museus são roubados, se a educação pública é um desastre anunciado, se o trânsito é um caos e a violência um dado dramático da vida diária, isso não é tarefa de Papai Noel, cujo único objetivo é ser uma fonte inesgotável de presentes. Haja, portanto, saco!

Afora esses pontos desagradáveis, porque ditos ''''políticos'''', que escapam dos mitos mais triviais de um ''''Papai Noel-Bom Velhinho'''' no qual eu jamais acreditei, pois creio que fui o único menino brasileiro que vi, graças ao meu sono leve, meu pai botando os presentes nos nossos sapatos naquela casa de Juiz de Fora, só resta acentuar que sendo de uma época na qual os meninos maus ganhavam ''''pedra'''', eu já não tolero mais essa hipocrisia de salvar o pecador pelo santo, quando o mais correto em toda a parte é fazer justamente o oposto.

E o santo aqui, amigos, é o Plano Real de um diabolizado FHC que os mais eminentes petistas diziam que ia dar errado, e que o programa revolucionário do PT, naquela época favorável do ''''tanto pior melhor'''', não pode desfazer. É ele justamente a competição, o mercado desatrelado do Estado que amplia crédito e que vai multiplicando a presença desses ''''Bons Velhinhos'''' que, nos chamados ''''shopin'''', vão botando o nosso dinheiro nos seus inesgotáveis sacos vermelhos.

Finalizando, desejo do fundo do meu coração, caro leitor, que 2008 seja um ano em que você não deixe ninguém cuidar de você. Que seja um ano no qual você seja cada vez mais responsável por sua vida e que, para tanto, tenha uma robusta e indestrutível saúde física e mental. Que você seja também desconfiado e, para tanto, leia mais livros, revistas e jornais, desligando a televisão de quando em vez. E que você possa introduzir na sua existência pessoal um lema básico da vida democrática: seja reivindicativo, denuncie mais, reclame e clame por seus direitos. Não deixe que aquele carinha ''''fale por você'''' porque, como revelam nossas cidades, mergulhadas nas fezes de administrações lamentáveis, os carinhas pensam primeiro neles e, depois na gente. Que 2008 nos faça ser, dentro dos limites da honestidade, um pouco como eles. Feliz, pois, Ano Velho!

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